Depois de décadas em que as cidades foram planeadas, idealizadas e construídas maioritariamente por homens, esta perceção vai sendo desconstruída, e as mulheres que fazem parte deste processo ganham notoriedade. Homens ou mulheres, na hora de planear e fazer cidade, pensar numa «cidade plural é o mais importante».
O papel das mulheres na evolução das cidades animou um dos debates da Semana da Reabilitação Urbana de Lisboa, numa sessão coorganizada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pela VI e pela WIRE – Women In Real Estate. Participando nesta mesa-redonda, a arquiteta Helena Roseta destacou que «temos de olhar para a cidade como uma cidade plural, isso é o mais importante, precisamos da diversidade e proximidade que a cidade exige na nossa vida quotidiana. A cidade é constituída pelos que nela viveram, pelos que nela vivem e pelos que estão a projetar o futuro», e lamenta que, no que toca aos representantes políticos (e, portanto, decisores), «ainda é uma espécie de clube privado dos homens. As mulheres entram em várias funções, mas não na hora de fazer listas, e é preciso lutar muito para inverter isto».
Também arquiteta, Inês Lobo defende que «continua a ser muito importante falar do papel da mulher seja onde for. Nas cidades, já não temos o papel das rainhas e das suas obras, e a cidade é uma invenção coletiva, nesse sentido, falamos de imensas mulheres. Mas é difícil autonomizar o papel destas mulheres neste coletivo». No entanto, «sinto que estamos cada vez mais mulheres sentadas à mesa e em obra, felizmente».
A complementaridade ao invés da oposição
Margarida Caldeira, Head da Broadway Malyan Portugal, não vê um traço predominante masculino ou feminino no desenho das cidades, «tudo o que fazemos é para todos, e a responsabilidade é imensa, sejamos mulheres ou não».
Sobre a questão do género no direito, e no urbanismo, a advogada Sofia Galvão, consultora sénior da PLMJ, afirmou que a legislação «não tem género, o urbanismo feito para servir uma realidade, e faz-se numa lógica muito disciplinar, nessa capacidade de conversar com todos». O caminho de igualdade feito pelas últimas gerações «foi muito importante e pode, claro, evoluir e ser aprofundado, para não voltarmos para trás, mas é importante não nos aprisionarmos em discursos que dividem a sociedade em grupos de homens e mulheres. É na complementaridade que devemos estar, não uns contra os outros».
Para Helena Roseta, «o direito e o urbanismo não têm género, mas o direito tem de ser sensível ao género e às desigualdades, tem de ser mais interativo e de abranger mais gente, mais participação dos cidadãos, todos eles e de todas as cidades. E se a lei não tem género, quem a exerce tem [masculino], e isso marcou muito as cidades, pelo menos no Ocidente». E alerta que «temos de manter esta abertura, principalmente no urbanismo», apelando para que, no desenho dos novos planos diretores, «não fechem as opções para o futuro, deem espaço à vida».
Tempo é essencial no governo de uma cidade. “Tornar tudo mais habitável é o mais importante”
Helena Roseta apontou ainda a questão do tempo como «o mais importante no governo de uma cidade e na nossa vida quotidiana», e considera que a sua gestão «tem sido muito cega ao género», lembrando que «as mulheres têm mais tarefas que os homens, menos tempo livre, são as que têm menos transporte individual e as que mais usam os transportes públicos. Como é que elas fazem tudo o que precisam? É um exercício de imaginação permanente. Se a cidade fosse mais próxima e mais bem pensada, ao nível do planeamento económico e urbanístico, se os espaços do quotidiano fossem mais próximos, perdíamos todos muito menos tempo e seriamos muito mais felizes». Por isso, remata que «tornar tudo mais habitável, mais próximo e aberto é o mais importante».
Resiliência e adaptação: “é isso que a Santa Casa faz”
Helena Lucas, diretora do Departamento de Gestão Imobiliária e Património da SCML, destacou a «resiliência, adaptação e capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo» das mulheres, «e é isso que a Santa Casa faz, tem capacidade de garantir e se responsabilizar por várias áreas, e consegue adaptar-se às necessidades da sociedade. E nos últimos anos tivemos várias situações fora do normal [pandemia ou guerra na Ucrânia]. Conseguimos dar a resposta necessária, de forma quase imediata». E completou que «estamos sempre a falar de pessoas, desde o benemérito, aos que o recebem, aos que beneficiam. É assim que temos cuidado do nosso património. Temos realizado um número considerável de obras nesta cidade, desde a recuperação de imóveis históricos. São bairros que ganham uma nova vida. É com este espírito de transformação contínua que nos dedicamos À revitalização da nossa cidade, garantindo que ninguém é deixado para trás. Queremos que a reabilitação urbana seja de pessoas para pessoas, que conjugue o legado do passado com as necessidades do presente, e que deixe confiança no futuro».
O exemplo das rainhas portuguesas que perdura
A discussão sobre o papel presente e futuro das mulheres nas cidades fez-se no seguimento de uma reflexão conduzida pela professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Maria de Fátima Reis, sobre algumas das intervenções mais importantes das mulheres do passado, nomeadamente as rainhas portuguesas que se destacaram pelas suas grandes obras na cidade de Lisboa. D. Leonor, por exemplo, foi fundadora da SCML, e ficou conhecida pelo seu patrocínio assistencial e espiritual. Mandou construir a atual igreja da Conceição Velha, na rua da Alfândega ou o Convento da Madre de Deus (atual Museu do Azulejo). D. Estefânia destacou-se pela sua ação de beneficência na cidade, e criou uma enfermaria para crianças no Hospital de S. José, acabando depois por fundar também o hospital pediátrico, atual Hospital D. Estefânia.
Por seu turno, D. Maria Pia dedicou-se por inteiro às causas sociais, fundando creches, auxiliando estabelecimentos de beneficência e atendendo diretamente aos pedidos de vários populares. Fundou o Colégio Maria Pia ou a Casa Pia de Lisboa. D. Amélia destacou-se pela fundação do Real Instituto de Socorros a Náufragos, do Dispensário de Alcântara, da Assistência Nacional dos Tuberculoso ou do Museu dos Coches, e ainda do Hospital Rainha Dona Amélia, na Praça do Chile.
Dar mais visibilidade ao trabalho das mulheres
Fechando este debate, Susana Pascoal, diretora de Marketing da VICTORIA Seguros, afirmou que «as mulheres também constroem as cidades, a questão é se têm a mesma visibilidade [que os homens]. A obra feita tem de ter a visibilidade merecida e o reconhecimento que lhe é devido».
Filipa Arantes Pedroso, presidente da WIRE Portugal, recordou que «a WIRE tem este objetivo de dar visibilidade às mulheres. Todas as nossas 85 associadas têm posições C-Level no setor imobiliário e são profissionais de excelência. Queremos contribuir para uma maior igualdade entre homens e mulheres. Porque temos maioritariamente visões masculinas nestes eventos e, de facto, as coisas podem andar para trás, e há ainda muito por fazer», rematou.